domingo, março 01, 2009

Há um ano falecia Joaquim Pinto de Andrade / Texto gentilmente cedido por Adolfo Maria

Angola perdia um ilustre filho em 23 de Fevereiro de 2008. Morria Joaquim Pinto de Andrade um dos símbolos maiores da resistência à opressão e da luta pela liberdade em Angola.

Nos tempos coloniais dos anos 50 do passado século, era um padre guiado pelos valores universais dos direitos humanos e pelos princípios doutrinários da sua religião, o catolicismo. Encorajava clandestinamente os seus compatriotas a lutarem pela liberdade e, abertamente, perante a nata da sociedade colonial, nas suas célebres homilias de domingo, na Igreja da Sé de Luanda, proclamava que os homens são todos iguais quando nascem e todos devem viver com dignidade. Apesar dos assuntos «provocadores» que nelas versava nas homilias, essa sociedade deliciava-se a ouvi-lo, tão grande era a sua erudição e fluente a sua oratória. Sendo padre (deixou de o ser anos depois, mas continuou católico) Joaquim Pinto de Andrade, convivia com ateus, agnósticos e fiéis de outras religiões e pela vida fora manteve sempre este espírito eclético e ecuménico.

Nos finais daquela década de 50, a situação política evoluía muito rapidamente: os nacionalistas angolanos organizaram-se para a acção política e, através de panfletos, denunciavam o colonialismo português e reivindicavam a independência nacional. Joaquim Pinto de Andrade embrenhou-se directamente nessa luta e, em 1960 é preso com Agostinho Neto e outros angolanos. Ambos são deportados de Angola. Joaquim Pinto de Andrade é colocado em Portugal onde iniciará um longo ciclo de residências vigiadas em diversos mosteiros e prisões em várias cadeias, que durou cerca de catorze anos. Enfrentou com firmeza e dignidade a polícia secreta salazarista, a PIDE, em vários interrogatórios, evocando as condições de opressão colonial em que vivia o povo angolano e afirmando que nada mais era que um homem assumindo a defesa das aspirações de liberdade do seu povo. Vozes se levantaram em todo o mundo contra a repressão que a polícia política portuguesa exercia sobre ele e o MPLA nomeou-o presidente honorário do Movimento.

Após a revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, Joaquim Pinto de Andrade procurou no Exterior dar a sua contribuição para a solução das divergências no seio do MPLA, dividido então em três tendências. Os tempos não se prestavam à sua mediação pois as perspectivas de uma próxima independência despoletaram em quase todos os dirigentes nacionalistas a preocupação maior e única de prepararem o assalto ao poder na futura Angola independente. Daí que graves questões como métodos de direcção e funcionamento do Movimento, responsáveis pela crise existente, e importantes questões nacionais não fossem objecto de interesse e preocupação dos dirigentes instalados pois o que lhes interessava eram as acções e manobras visando uma próxima conquista do poder em Angola.

Mesmo assim, depois de numerosas conversações e mediações de países africanos limítrofes amigos, foi decidida a realização de um congresso que levasse à unificação das fileiras do MPLA, estabelecesse métodos democráticos no seio da organização e definisse as estratégias a seguir naquele delicado momento político que antecedia as conversações com o novo regime português para a independência de Angola. Mas o congresso de Lusaka fracassou, devido às posições extremadas de Neto e Chipenda. Foi então que Joaquim Pinto de Andrade aderiu à facção Revolta Activa e passou a ser o seu líder.

Regressado meses mais tarde ao país, foi alvo de humilhações públicas por parte de vários sectores do MPLA às quais respondeu corajosamente. Após a independência, viu serem presos vários membros da ex-Revolta Activa e outros patriotas. De novo foi atacado na imprensa oficial por escribas ignorantes ou de má fé que vomitavam várias insinuações e calúnias até a de traição à pátria. Contra a repressão reagiu escrevendo cartas ao presidente Neto e chamando-lhe a atenção para o processo de exclusão de cidadãos válidos da vida nacional que fora desencadeado, um processo susceptível de trazer consequências ao próprio presidente. Eram proféticas as suas palavras porque um ano depois deu-se o 27 de Maio. Joaquim Pinto de Andrade, o incansável lutador pela liberdade, o tenaz resistente à opressão colonial, assistiu consternado a uma sanguinária repressão feita por angolanos sobre angolanos (até do mesmo partido político) na Angola Independente.

Desde a independência que estava impossibilitado de se pronunciar publicamente e também impedido de exercer profissão pública. Mas a sua ânsia de intervenção na sociedade angolana permanecia e, assim, em Janeiro de 1990 criou a Acção Cívica Angolana, ACA. Depois, na abertura política proporcionada pelos acordos de Bicesse, ainda procurou exercer intervenção política através de um dos novos partidos, mas depressa se desiludiu. Tendo-se afastado da intervenção directa, falava de Angola em colóquios internacionais para os quais era convidado pelos organizadores. Até que a doença o acometeu e nele se instalou durante longos anos em que lentamente foi perdendo as suas capacidades até ao desfecho ocorrido há um ano, tinha ele oitenta e dois anos.

É útil lembrar que Angola se tornou independente graças às atitudes e actos de pessoas como Joaquim Pinto de Andrade. Contudo, o Estado angolano ainda não reconheceu os erros que praticou em relação a este patriota e exemplar cidadão nem lhe presta a homenagem a que tem direito pelo contributo que deu à Pátria, colocando-o na galeria histórica dos mais insignes angolanos.

Mas, independentemente dos reconhecimentos oficiais, importa o exemplo que Joaquim Pinto de Andrade será para as novas gerações angolanas. Neste momento que Angola atravessa em que as concepções dominantes na sociedade são o ganho fácil e a ganância desenfreada, o recurso a todos os meios mesmo os mais abjectos para se conseguir os seus fins, o desprezo mais absoluto pelo povo, convém recordar os princípios que orientaram a vida de Joaquim Pinto de Andrade e que podem servir de estímulo àqueles que desejam ver Angola tornar-se um país de maior justiça social.

A constante luta pela liberdade dos homens e dos povos, a coragem face à repressão em todos os momentos (perante o regime colonial ou perante a ditadura nacional), a honestidade e dignidade, o civismo, o amor ao seu povo são valores que nortearam a vida de Joaquim Pinto de Andrade e constituem um magnífico legado ao seu país.

Adolfo Maria
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2009

Gentil Viana faleceu há um ano / Texto de Adolfo Maria

Gentil Viana faleceu há um ano

A 23 de Fevereiro de 2008 falecia Gentil Ferreira Viana o destacado vulto da luta pela independência de Angola, íntegro cidadão e brilhante pensador.
Nos seus tempos de aluno do curso complementar do liceu de Luanda, 1953-1954, Gentil Viana impunha-se aos colegas pela sua capacidade de raciocínio e pela sua convivialidade. Apaixonado pelo seu país e pelos feitos dos mais velhos (entre eles o seu pai Gervásio Viana, fundador da Liga Nacional Africana) na resistência ao sistema colonial e na dignificação do homem angolano, Gentil Viana mobilizava através de eloquentes conversas e discussões os seus colegas em torno das questões ligadas à identidade nacional. Em grupos mais restritos e mais clandestinos falava da necessária independência do País. Em Portugal, para onde foi fazer os seus estudos universitários, elaborou um plano para o controle da Casa dos Estudantes do Império pondo esta associação de estudantes oriundos das colónias portuguesas ao serviço das causas nacionalistas daqueles países sob dominação colonial. Em 1961 participou na saída clandestina de cerca de cem estudantes africanos para França, o que permitiu aos movimentos nacionalistas, em especial o MPLA, receberem repentinamente numerosos quadros. Em breve o jovem advogado Viana foi integrado na diplomacia do MPLA, acompanhando o presidente do Movimento, Mário de Andrade às sessões do comité de descolonização da ONU e a visitas a vários países.
Em 1962, na Conferência Nacional do MPLA, em Leopoldville, num intenso debate, Gentil Viana e Viriato da Cruz confrontaram as suas ideias sobre o momento político que se vivia e as saídas para o desenvolvimento da luta armada e implantação do MPLA no interior. Viana apresentou um projecto de desenvolvimento da guerrilha e de tácticas a seguir no Exterior pelo MPLA, plano esse que a assembleia aprovou.
Pouco tempo depois, Gentil Viana, descontente por o seu plano não estar a ser aplicado e pela estagnação que continuava a existir, abandona a actividade militante e acaba por ir para a China onde lhe foi dada a tarefa de traduzir para português as obras de Mao-Dze-Dong e outros. Aproveita este período para estudar filosofia e obras sobre as grandes revoluções do século XX: nomeadamente a soviética e a chinesa.
Em 1971, na sua visita à China, Agostinho Neto convida-o a retomar a actividade militante no MPLA e é então que Viana e outros quadros idos da Frente Leste frequentam um curso específico de formação militar superior. Regressado esse grupo à Frente Leste, em meados de 1972, encontra uma situação caótica: a ofensiva militar portuguesa tinha empurrado as forças guerrilheiras para a fronteira, a desorganização e falta de motivação eram generalizadas entre as populações refugiadas, militantes, quadros, guerrilheiros. Eram constantes as queixas contra as negligências de dirigentes ou seus comportamentos. Gentil Viana viu que era necessário por em causa aquilo que já mostrara a sua ineficácia e estava na base do descontentamento geral, ou seja, as estruturas e as concepções de condução existentes. Concebe um plano que apresenta ao presidente Agostinho Neto. Este aceita. Trata-se do «movimento de reajustamento». O ponto de partida foi o congelamento do comité director (a direcção do Movimento). Assim eram temporariamente suspensas as hierarquias, o que possibilitaria às pessoas falarem livremente apontando as falhas da organização e dos responsáveis de todos os escalões. Todos passaram a ser iguais, sem qualquer espécie de coacção. O movimento de reajustamento foi uma gigantesca discussão dentro do MPLA como nunca dantes houvera e com entusiasta participação de todos. Os documentos teóricos que Gentil Viana elaborou para o arranque do reajustamento, a metodologia proposta representam um pensamento profundo e uma enorme criatividade.
Em finais de 1972, Gentil Viana é nomeado conselheiro do presidente, e realiza com êxito a tarefa de resolver o imbróglio político criado pelo surpreendente acordo que Neto fizera com Holden em Kinshasa e que tanto penalizava o MPLA.
No início de 1973, a situação geral do MPLA, política, militar e diplomática era muito má. Na Frente Leste surgira a Revolta do Leste, como pretexto à súbita retirada de quadros para a Frente Norte, toda actividade política e militar estava parada. Na Frente Norte, a manipulação do reajustamento pela presidência do Movimento, concluído em Fevereiro de 1973, ocasionou descontentamento em vários quadros e militantes que viam persistir a degradada situação.
É então que Gentil Viana se empenha em mobilizar clandestinamente militantes e quadros para um pronunciamento a favor de medidas que transformassem o MPLA na organização eficaz que a luta requeria e os militantes desejavam. Assim nasceu o famoso “Apelo dos Dezanove” porque foi este o número dos seus primeiros subscritores. Nesse apelo, concebido por Viana, atacava-se o presidencialismo absoluto que atrofiava a organização, apelava-se para a realização de um congresso para acabar com as divisões existentes, instituir a prática democrática no MPLA e definir as estratégias de luta adequadas. Este pronunciamento chamou-se Revolta Activa. Ele surge numa situação interna e externa extremamente complexa. O mundo estava dividido em dois blocos profundamente antagónicos: um, o Ocidente sob a capa dos Estados Unidos que, em nome da democracia apoiavam as ditaduras africanas e da extrema direita nos continentes americano, asiático, e europeu (Portugal e Espanha) e faziam a guerra ao povo vietnamita; o outro, chamado Bloco do Leste, que apoiava os movimentos de libertação, e onde imperava a União Soviética, constituído por países de partido único que exerciam um poder ditatorial. No movimento nacionalista angolano, a FNLA e o MPLA estavam em profunda crise, essencialmente por erros cometidos no seu seio e na condução da luta. É neste contexto que surge o apelo da Revolta Activa cuja questão central era a democracia no seio do MPLA e no seio da Nação. Para lá da sua urgência naquele momento político angolano, a questão da democracia era uma questão de grande actualidade para os povos de todo o Mundo necessitando uma profunda reflexão não só porque estava a ser secundarizada em todos os países, mas também por ser um valor civilizacional, determinante instrumento do progresso humano. Nesse apelo, Viana punha questões universais que só décadas mais tarde seriam objecto de decisões internacionais.
A independência de Angola deu-se nas condições dramáticas que conhecemos. Poucos meses depois, Gentil Viana e outros seus companheiros viriam a ser perseguidos e encarcerados a 13 de Abril de 1976, como castigo do pronunciamento que haviam feito dentro do MPLA em 1974. Fez greve de fome, dizendo que não lutara pela independência do seu país para estar guardado por soldados estrangeiros, que eram cubanos. Dos maus tratos recebidos ficou cego de um olho. Em finais de 1978 foi deportado para o estrangeiro, tendo fixado residência em Portugal, onde se encontrou sem documentos de identidade, numa situação de apátrida. Aí exerceu a advocacia. Simultaneamente com a sua profissão reunia e discutia os problemas do país com alguns companheiros também ali exilados, tendo-se formado um grupo de reflexão que viria a desencadear em 1989 e 1990 uma actividade diplomática para apoio às suas propostas de fim da guerra civil em Angola, um objectivo que deveria ser conseguido sem a intervenção estrangeira e recorrendo à mediação angolana, ou seja fazendo recurso à própria nação. Desta actividade destacam-se as conversações com os dirigentes de Cabo Verde e com dirigentes de partidos portugueses. São essencialmente da autoria de Gentil Viana os documentos de denso conteúdo que então foram elaborados: Apelo a Chefes de Estado africanos; documento de análise das origens do conflito angolano e dos interesses da cada uma das componentes do conflito: MPLA e UNITA, como componentes internas, África do Sul, Estados Unidos, Cuba e União Soviética, as componentes externas; memorando aos chefes de estado dos países envolvidos no conflito angolano.
Entretanto, e secretamente, a UNITA e o MPLA começaram a negociar, chegando aos acordos de Bicesse que consagraram a desigual partilha do poder pelos dois contendores e uma democracia formal em que a vitrina era a constituição de numerosos e ineficazes pequenos partidos.
Sempre pensando que o país só poderia avançar se todas as vontades fossem mobilizadas para um objectivo de interesse comum, Gentil Viana viu nas tréguas instaladas a possibilidade de se recorrer à Nação para garantir a Paz. Deslocou-se a Luanda para apresentar o seu plano de convivência nacional ao presidente da república e aos dirigentes dos partidos, aos responsáveis da igreja católica e protestante, a membros da sociedade civil. Esse plano, inicialmente aceite com interesse e depois desprezado pelos dois partidos que já se preparavam para o ajuste de contas de Outubro de 1992, contém elaborados princípios e metodologias para a intervenção da Nação na arbitragem do conflito e na construção de normas de convivência, garantia de uma real reconciliação nacional.
Pouco depois de retomada a guerra civil em Angola, Gentil Viana teve um AVC de que conseguiu recuperar. O país continuou mergulhado na guerra, mas Viana não deixava de pensar num futuro mais feliz para a pátria. Os anos foram passando, foi-se debilitando e, por fim, tomado por implacável doença. Faz agora um ano que morreu, tinha setenta e dois anos de idade.
Gentil Viana merece ser estudado porque, possuindo uma enorme inteligência que pôs ao serviço da causa da liberdade do povo angolano, produziu sempre um pensamento inovador não só angolano mas universal. A sua integridade, a sua postura de não aceitação do statuo quo paralisante, a sua capacidade em fazer rupturas com o etablishement, a sua procura audaciosa de novos caminhos para a liberdade e dignidade dos homens, a sua coragem ao enfrentar e desafiar a opressão fazem dele uma referência nacional e um incentivo para que as novas gerações procurem um caminho para o povo angolano onde não tenha lugar o rastejar da submissão e onde a dignidade seja um valor cultivado.

Adolfo Maria
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2008