domingo, dezembro 26, 2010

JORGE DE SENA /Some-te rato/ Depoimento corajoso em 1959 / S. Paulo

Some-te rato!



Em novembro de 1959 estreia-se Jorge de Sena como colaborador do jornal Portugal Democrático, editado em São Paulo desde 1956 por um ativo grupo de oposicionistas portugueses. O texto abaixo (prudentemente anônimo), além de mencionar as comemorações do “5 de outubro”, justifica e adensa de significado os desenhos satíricos de Fernando Lemos – ratos a figurarem o arqui-inimigo Salazar –, que vinham pontuando as páginas do jornal e deliciando os leitores

Tratam-te os que te lambem e legitimam, por Sr. Presidente do Conselho. Chamam-te os que ainda acreditam nas Universidades que degradaste, por Professor Doutor. No tempo em que eras fascista sem vergonha passavas por ser o Chefe, e os leonardos, teus chacais, escutavam a tua Palavra. Depois, quando inventaste a “democracia orgânica”, gostavas que te apelidassem de Chefe... do Governo. Mas, no isolamento e no silêncio e na treva, que é o sítio vago onde estaria a alma que te fugiu aterrada com o cheiro de arganaz podre a que o teu cérebro e o teu coração fedem, tu sabes que não és nada disso. Presidente de quê? De um Conselho de lacaios? Chefe de quê e de quem? Dos assassinos e ladrões impunes que proteges, para que eles te protejam o couro ressequido que nunca terá conhecido para que dignidade e que alegrias serve a carne humana? Professor de quê? Doutor em quê? Professor de desmoralização, de ceticismo, de corrupção, de crueldade, de hipocrisia, de blasfêmia, de infâmia? Doutor em quê? Em técnicas de Censura e de Polícia, que são toda a tua política, toda a tua filosofia, toda a tua religião?
Some-te, rato! Mergulha de uma vez no esgoto de oito séculos de erros que te criaram e engordaram, como excremento que és, venenoso, estéril, impotente. Rato, apenas, rato.
As comemorações brilhantíssimas do 5 de Outubro em São Paulo, o que elas significam de unidade na luta democrática, o que elas projetam no futuro como esperança de dissolução sulfúrica da tua presença pestilenta, nada disso chegará aos teus ouvidos surdos, às tuas unhas negras da pele dos mártires que esfolaste, à tua cauda imunda, com que fustigas um dos mais gloriosos e heróicos povos da terra. Não lerás, também porque és analfabeto e nunca leste nada, o telegrama em que os democratas reunidos para comemorar a Revolução que hoje simboliza a unidade de todos os portugueses, sem distinção de raça, religião ou credo político, na luta contra a tua baba peçonhenta, com que tens envenenado tanto patriota ingênuo que no Brasil honra o trabalho português, pedem a tua demissão.
E fazes bem, fazes bem. Tu não podes demitir-te, porque nunca foste nomeado. Tu és o símbolo da ilegalidade, da arbitrariedade, da injustiça, da opressão. Não te demitas, some-te! Some-te, rasteiro como nasceste, como subiste, como governaste, como imitaste nos teus discursos, laboriosamente vomitados, uma língua admirável que, rato que és, nunca soubeste falar. Some-te tal como viveste, com a mesma covardia com que mandaste assassinar, roubar, violentar. Some-te rato, com a tua bota de elástico, a tua pena de pato, a tua ceroula de fita, as tuas letras gordas, a tua finança de chácara, a tua economia de campônio, a tua política de traidores à Pátria. Some-te assim, rasteiro e mesquinho, como vieste! Some-te, rato! E que o ódio de um Povo, e o desprezo de todos os amantes da liberdade e da justiça, saibam esquecer o momento de nojo e de vergonha e castração que tu longamente foste, em mais de trinta anos de horror e reles mesquinhez. Que nem a tua pele piolhosa fique apodrecendo na memória das gentes, mais que como imagem da peste política e moral! Some-te rato!



terça-feira, dezembro 21, 2010

AOS DOIS CADÁVERES

OS DOIS CADÀVERES


Coube a Jorge de Sena o editorial do jornal Portugal Democrático de abril de 1960, evocando o cadáver do Capitão Almeida Santos, um dos líderes da abortada “Conspiração da Sé” (da qual participara o próprio Sena), encontrado na praia do Guincho – caso que também forneceu mote a José Cardoso Pires para o seu Balada da Praia dos Cães.





Noticiaram os jornais a 2 de abril, em telegrama da AFP, que “as investigações para identificação de um cadáver descoberto anteontem na praia do Guincho, perto de Lisboa, permitem suspeitar de que se trata do capitão Almeida Santos, um dos evadidos da prisão militar de Elvas, em Dezembro último, onde estava encarcerado por actividades políticas contra o regime”. Tão sinistro, hipócrita e cobarde é o espírito da ditadura salazarista, que até o teor deste telegrama o retrata. É possível que o cadáver seja... Suspeita-se de que seja... Porquê? O cadáver está mutilado, irreconhecível, podre, como o próprio cadáver da Pátria que simboliza? Foi estrangulado, baleado, afogado, atropelado, atirado de uma janela alta, como todos os que “se” estrangularam, balearam, afogaram, atropelaram, atiraram - depois de caídos nas garras da PIDE? Fica-se na dúvida, a dúvida alimentada pela incerteza. Não há responsáveis de coisa alguma, ninguém é responsável de nada... Nada se passou - a não ser a satisfação dada ao registro civil de um óbito, um modesto óbito incerto que permite enterrar o sujeito em silêncio mais definitivo que uma desaparição inexplicável.

Isto é Salazar inteiro, isto é Portugal ensangüentado e trágico, que nem sequer nos cobre de vergonha com a sua atrocidade, porque permite (suspeitar...) todas as complacências, todas as cumplicidades, todas as mesuras da diplomacia covarde e interesseira. NEM SEQUER podemos ter vergonha disto, aos olhos do mundo, porque o mundo a não tem, antes de nós, de pactuar com os crimes de Salazar.

Que cadáver submisso! Que cadáver silencioso! Quantos meses levou a percorrer a escassa largura de Portugal, desde Elvas até àquele Atlântico que é o mesmo que banha as costas do Brasil! Numa praia deserta, aparece o cadáver hipotético de um homem que foi um dos chefes militares do 12 de março. Cadáver que poderia ser o de qualquer outro da enorme quantidade de civis e militares de todas as opiniões políticas que tentaram o “12 de Março” com uma extensão e uma profundidade que o Estado Novo teme esclarecer! Fazer aparecer o seu cadáver é mostrar a sorte que poderia ser a de cada um, mas é também roubar à vítima e aos outros o galardão do martírio, do sacrifício, do escândalo nacional e mundial, a que não resistiria um governo de assassinos mais vis que a vileza, porque nem mesmo tem a ombridade de estadear a sua profissão verdadeira.

Onde está o “glorioso Exército português”? Porque o capitão Almeida Santos era um dos seus membros mais brilhantes. Onde está a consciência dos pais de família. Porque o capitão Almeida Santos era um pai de família. Onde está o povo português? Porque o capitão Almeida Santos era um português. Onde está Portugal?

Tu, Salazar, nunca fizeste serviço militar. Nunca foste – que tenhas tido a dignidade de o confessar – pai de família. Nunca foste português, porque os portugueses sempre se vangloriaram de tudo, até dos crimes. Mas serás um cadáver, hás-de ser um cadáver, terás de ser um cadáver. Não um cadáver hipotético – como o da Pátria ensangüentada – abandonado, tão ocasionalmente, numa praia deserta. Mas um cadáver – consola-te – que não terá tempo de apodrecer, como o da Pátria em trinta anos de governo teu. Um cadáver que a terra portuguesa se recusará a comer. Um cadáver que os mares de Portugal – e todos são – se recusarão a engolir.

“PORTUGAL DEMOCRÁTICO” concita a consciência do mundo a que compare e escolha – entre o cadáver hipotético do Cap. Almeida Santos, um homem de bem que tentou honestamente salvar a sua Pátria, e o cadáver inadiável do tirano, um homem de mal que tenta cavilosamente destruí-la consigo. “PORTUGAL DEMOCRÁTICO” pergunta de uma vez para sempre ao glorioso Exército português: a qual dos cadáveres ele acha que deve honras militares.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Quem era Helena Maria 1937-2010

Quem era


HELENA MARIA 

(1937-2010)



Espontânea, senhora de enorme força vital sempre de alegre e sincera convivialidade, derretendo-se de ternura pelos seus familiares e amigos e por todas as crianças do mundo sensível ao sofrimento dos mais desprotegidos da Terra, solidária com as vítimas das múltiplas repressões que sofrem os humanos, enfrentando com destemor as adversidades, abraçou a causa nacionalista angolana em 1959quando se casou. Com 21 anos de idade, casada há cerca de três meses, vê o seu marido ser preso em Luanda pela polícia política portuguesa, a PIDE. Sem experiência política ela enfrenta com dignidade os esbirros e as chantagens.



Desde 1963 no exílio, participa na luta pela independência de Angola através de intensa actividade no Centro de Estudos Angolanos, em Argel, a partir de 1964, (documentação, feitura de manuais de formação política e escolares) e depois no Congo – Brazzaville, onde é também locutora na rádio do MPLA, a Voz de Angola Combatente, e dá aulas dos programas do ensino primário e secundário aos militantes. Em 1974, adere à tendência chamada Revolta Activa , que contestava os métodos autocráticos da presidência do MPLA.



No pós-independência de Angola, em Abril de 1976, o regime instalado no poder manda encarcerar vários elementos da Revolta Activa, conseguindo o seu marido esconder-se. A Lena aguenta estoicamente a ausência dos filhos, Mário Jorge e Tonica - que tinham ido visitar os avós a Portugal e receberam instruções para não voltar, dado o ambiente repressivo – e debate-se com a incerteza do paradeiro do marido. Nesses cerca de três anos de ausência do companheiro e filhos, enfrentou dignamente as mais variadas provocações. Em Janeiro de 1979, acompanha o marido, Adolfo Maria, que fora expulso do seu país e metido num avião para Portugal, para um novo exílio. Aí reconstroem o seu núcleo familiar e recomeçam a vida. Com a sua inteligência, energia e comunicabilidade, a Helena Maria impôs-se profissional e socialmente, tal como sempre o fizera. Há cerca de quatro anos que lutava estoicamente contra um cancro do pulmão, enfrentando sempre confiante cada batalha a travar nessa inexorável marcha de adiar a morte.



Esta mulher transmontana, natural de Chaves, singela, frontal e acolhedora - à maneira de ser da sua região de origem – tinha também o convívio fácil, exuberante e abrangente que caracteriza os angolanos com quem tanto fraternizou e lutou pela liberdade. Mas, há sobretudo a registar o seu carácter, muito próprio, que se manifestou nas mais diversas circunstâncias e lugares. Da Lena fica para todos nós a sua enorme força interior que generosamente transmitia, uma viva inteligência, uma constante curiosidade pelo saber, a sua grande sensibilidade, a sua jovialidade, a profusa ternura com que envolvia os seus familiares, amigos e companheiros de luta, a sua solicitude e disponibilidade para partilhar, para socorrer, para acarinhar, a sua coragem em enfrentar adversidades e sobreviver a provações, a sua dignidade, que sempre preservou.



Ficámos sem o seu magnífico sorriso que iluminava os rostos dos que a rodeavam, esse sorriso que tanto aquecia os nossos corações.



Adolfo Maria

Lisboa, 6 de Dezembro de 2010